Você já parou para pensar no que é inteligência? Não que está no dicionário ou nos testes de QI, mas o que você, de verdade, entende como ser inteligente. É o colega que resolve uma equação em segundos? Um cachorro que entende comandos? Um polvo que escapa de um aquário? Ou talvez uma IA que responde perguntas como precisão? A verdade é que essa palavra "inteligência" vive na boca do povo, mas escapa de sua definição. E quanto mais tentamos agarra ela, mais ela escorrega pelos dedos. A impressão que dá é que, no fundo, cada uma enxerga inteligência à sua maneira. E é justamente isso que quero conversar.
Talvez porque ela é um reflexo de nós mesmos. Buscamos inteligência nos bichos, nas máquinas, os parceiros da vida, nos filhos. Enxergamos inteligência até em objetos quando eles nos ajudam de maneira inesperada, como, por exemplo, aquele aplicativo que sugere a rota perfeita ou o micro-ondas que "sabe" quando a pipoca está pronta. Mas se eu te dissesse que a inteligência não está neles, mas em nós? Que ela é uma lente, um filtro mental, através do qual interpretamos o mundo?
O que os humanos chamam de inteligência é, na verdade, um mosaico de comportamentos que deram certo ao longo da nossa evolução. Não tem uma única forma, nenhuma medida exata. É uma colcha de retalhos feita de raciocínio, adaptação, linguagem, estratégia e outras habilidades que, juntas, nos ajudaram a sobreviver. Acontece que, ao longo da história, tentamos empacotar tudo isso num conceito único e objetivo. Como se inteligência fosse uma espécie de substância invisível que alguém ou algo "tem" ou "não tem". Só que isso é uma grande ilusão. Inteligência é um conceito moldado por expectativas humanas, e pior, por expectativas muito pessoais.
Pensa comigo: o que é inteligente para mim pode não ser para você. Eu posso me impressionar com uma colônia de formigas que constrói pontes vivas com seus próprios corpos. Você pode achar genial o corvo que usa ferramentas para alcançar comida. E outros podem achar tudo isso "instintivo", "automático", e só ver inteligência num cientista ganhador de Nobel. A realidade é que confundimos surpresa com inteligência.
Essa surpresa, ou como podemos chamar de algo que descobrimos e ficamos espantados, é o que aciona o nosso radar mental. É o choque entre o que esperávamos ver e o que realmente acontece. Quando alguém ou algo foge do roteiro que conhecemos e ainda por cima alcança um objetivo, chamamos isso de inteligência. Outro exemplo é o polvo que desliga a luz do aquário atirando água nos cabos elétricos. A maioria de nós fica de boca aberta, "Esse bicho é um gênio", mas se uma barata resolve um problema semelhante, provavelmente nem reparamos. Não porque ela é menos "inteligente", mas porque nosso cérebro não estava pronto para se surpreender com ela.
Isso vale para os seres humanos também. Associamos inteligência com certas formas de sucesso, e valorizamos esse "sinal" como uma pista social. Afinal, ao longo de nossa evolução, reconhecer pessoas inteligentes, ou seja, aquelas com boas ideias, estratégias e soluções, aumentava nossa chance de sobreviver. Era esperto andar com outros inteligentes. Mas veja bem: a "inteligência" que reconhecemos é sempre a que se alinha com nosso modelo mental de crenças. É sempre o que parece útil, surpreendente ou alinhada com nossos próprios valores.
E o que dizer da inteligência das máquinas? A história sempre é a mesma, primeiro nos espantamos com algo novo, depois entendemos como funciona, aí deixamos de achar tão interessante. A inteligência artificial (IA) é melhor exemplo disso, no começo, ficamos maravilhados com computadores vencendo humanos no xadrez, hoje isso é considerado trivial. Quando a IA escreve textos, pinta quadros ou responde perguntas como um humano, chamados de inteligência, até entendermos como ela foi treinada. Aí retrocedemos: "Ah, não é bem inteligência, não é? É só estatística avançada." Esse movimento tem até nome "o efeito IA". A inteligência, é sempre aquilo que ainda não conseguimos fazer. Quando se aprende se muda o critério.
Nos animais podemos criar esse mesmo critério. Um esquilo esfregando pele de cobra no corpo para enganar predadores parece um gênio da floresta. Mas o mesmo esquilo que congela no meio da estrada é visto como burro. No entanto, ambos os comportamentos seguem padrões evolutivos testados e aprovados. O problema não está nele, mas em nós. Projetamos inteligência no mundo da mesma forma que projetamos beleza. É subjetivo, é cultural, é humano.
E se inteligência não for o quê pensávamos? Vamos imaginar outro exemplo, o arco-íris. Ele existe, certo? Você vê, eu vejo ele. Mas se ele só aparece quando certas condições estão alinhadas, como gotículas de água, luz solar, ângulo exato. O arco-íris lá, mas só para quem olha do ponto certo. A inteligência também, ela é como um arco-íris conceitual, não é uma "coisa" está no mundo esperando ser medida, ela é um fenômeno perceptível, um reflexo de como nós interpretamos certos comportamentos e soluções. Como o arco-íris, ela depende do observador.
E por que isso importa? Porque ao rotular algo ou alguém como inteligente, nós não estamos apenas descrevendo, estamos valorizando, estamos atribuindo status, dignidade, poder. É por isso que discutir inteligência animal nunca é só sobre ciência, é sobre ética. É sobre se os elefantes deveriam ter direitos, e os polvos devem ser protegidos, se uma IA merece respeito. O que estamos perguntando não é se eles são inteligentes, mas se são como nós.
A armadilha está aí: nosso conceito de inteligência é humanocêntrico. Criamos uma espécie de molde baseado em nós e resolvemos problemas. Tentar encaixar o resto dentro desse molde, um peixe, uma bactéria ou uma IA precisa jogar o nosso jogo, nas nossas regras, para "provar" que é inteligente. Mas se o sucesso deles não tiver nada a ver com o nosso? O tardígrado sobrevive no vácuo do espaço, o cavalo-marinho macho fica grávido, o camarão mantis enxerga cores que é não conseguimos nem imaginar. Eles são "burros" só porque não resolvem problemas do jeito humano?
A inteligência é nossa herança evolutiva, mas não é um troféu universal. Quando olhamos para trás, vê que ela surgiu como um pacote de habilidades que foram sendo acumuladas, pouco a pouco, ao longo de milhões de anos, com ferramentas, linguagem, memória, criatividade, tudo isso foi sendo somado e refinado e acostumamos a ver esses traços como inseparáveis, mas não são. Cada animal, cada planta, cada bactéria, cada sistema, encontrou suas próprias formas de dar certo, nós humanos, somos mais uma dessas formas. Inteligência, então, é uma lente para entender nosso sucesso, não o único jeito de vencer o jogo da vida.
E se mudássemos a pergunta? Em vez de perguntar "isso é inteligente", talvez devêssemos perguntar "isso deu certo para esse ser?". A IA resolveu um problema? O polvo sobreviveu? A bactéria se multiplicou? O cogumelo ocupou uma floresta inteira? Então funcionou. Essa mudança de perspectiva pode nos ajudar a perceber e valorizar as múltiplas formas de sucesso que existem no planeta, e fora dele, quem sabe.
Se nós algum dia encontrar vida fora da Terra, será que vamos reconhecê-la como inteligente? Ou vamos esperar que ela, escreva, calcule, jogue xadrez? Será que saberemos identificar sucesso em formas que não se parecem em nada com as nossas? Talvez estejamos cercados por soluções engenhosas que passam despercebidas, justamente porque não se alinham com o nosso modelo mental de inteligência.
Para mim, o ponto central é esse: inteligência é um espelho. Olhamos para o mundo e procuramos nele a nossa própria imagem. Quando encontramos algo que se move, reage, aprende ou surpreende, do jeito que nós faríamos, chamamos de inteligente. Mas essa busca revela mais sobre quem somos do que sobre quem observamos. E talvez, ao reconhecer isso, conseguimos expandir nossa capacidade de se encantar com outro. Porque inteligência não é só aquilo que procuramos, é também aquilo que através do qual nós olhamos.