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Quando pensamos em autoconhecimento, geralmente nos vem à mente uma jornada introspectiva, uma busca por entender quem somos, nossos sentimentos, pensamentos e motivações mais profundas. Porém, na psicologia comportamental, particularmente do ponto de vista do behaviorismo radical de B.F. Skinner, o autoconhecimento assume um contorno bastante distinto de outras abordagens. Vamos entender e explorar essa visão de como o behaviorismo reformula a maneira de como entendemos nosso próprio comportamento.
O Surgimento do Behaviorismo Radical
O behaviorismo radical, como proposto por B.F. Skinner, se destacou por sua tentativa de tratar o comportamento humano como objeto de estudo científico, distanciando-se das abordagens anteriores que dependiam fortemente de conceitos como "mente" ou "consciência" no sentido tradicional. Nesse contexto, a proposta de Skinner foi inovadora ao sugerir que a psicologia poderia, e deveria, ser uma ciência do comportamento observável.
Um dos pontos centrais dessa abordagem é a rejeição da ideia de que a mente, ou os eventos privados, como pensamentos e sentimentos, devem ser tratados como algo distinto do comportamento. Para Skinner, tudo isso poderia ser considerado comportamento, embora alguns comportamentos fossem "privados" — ou seja, não diretamente observáveis por outros.
Isso levantou a visão de que eventos privados ou internos, como sentir dor ou ter um pensamento, são tão físicos quanto qualquer outro comportamento. Essa visão monista contrapunha-se às abordagens dualistas que dominavam a psicologia da época até então, nas quais a mente era considerada separada do corpo e do comportamento. Ou seja, a mente era considera algo externo do corpo, e não dependia dele para se manifestar.
Autoconhecimento Sob a Perspectiva Comportamental
Se o autoconhecimento é compreendido como um tipo de comportamento, a pergunta seguinte é: como ele se desenvolve? Skinner sugeriu que o autoconhecimento não é algo intrínseco ao ser humano, mas sim algo aprendido por interações com o ambiente social. Em outras palavras, aprendemos a nos conhecer enquanto a sociedade nos ensina a discriminar nossos próprios comportamentos.
Por exemplo, pense em como uma criança aprende a identificar e verbalizar suas emoções. Inicialmente, ela pode não ter uma palavra para descrever o que sente ao se machucar. Mas, ao ouvir repetidamente dos pais algo como "Você está sentindo dor?", ela começa a associar o estado interno de desconforto à palavra "dor". Esse processo de aprendizagem se torna fundamental para o desenvolvimento do que podemos chamar de autoconhecimento.
Skinner propôs que essa aprendizagem acontece através de reforçamento social. Quando uma pessoa corretamente descreve um estado interno, como dizer "Estou com fome" quando de fato está com fome, essa resposta é reforçada pela comunicação verbal (ou seja, pelas pessoas ao seu redor). Com o tempo, esse repertório verbal se torna mais refinado, permitindo à pessoa descrever seus estados internos com maior precisão.
A Complexidade dos Eventos Privados
Embora Skinner tenha oferecido um caminho para abordar o autoconhecimento, ele também reconheceu que os eventos privados trazem desafios únicos. Como esses eventos são, por definição, acessíveis apenas ao próprio indivíduo, ensinar alguém a discriminar e relatar esses eventos de maneira precisa não é uma tarefa simples.
Skinner identificou algumas estratégias que a sociedade usa para ensinar as pessoas a relatar eventos privados. Uma delas é a associação de eventos privados a eventos públicos observáveis. Por exemplo, se uma criança cai e sente dor (um evento privado), ela pode começar a chorar ou colocar a mão no local machucado (um evento público). Os adultos ao redor podem então reforçar a resposta verbal "Estou com dor", mesmo sem ter acesso direto à sensação de dor que a criança está experimentando.
Outra estratégia é o reforço baseado em comportamentos colaterais. Imagine alguém que está com dor de dente. Além de relatar a dor, a pessoa pode esfregar a mandíbula ou fazer uma careta. Esses comportamentos colaterais ajudam a sociedade a inferir o evento privado (a dor) e a reforçar o relato verbal desse evento.
Limites e Possibilidades
Apesar das estratégias mencionadas, Skinner foi claro ao reconhecer que o processo de adquirir um repertório verbal preciso sobre eventos privados é limitado. A precisão com que conseguimos descrever nossos estados internos é sempre uma questão de grau, e nunca absoluta. Isso significa que o autoconhecimento, do ponto de vista comportamental, é sempre falível e, de certa forma, imperfeito.
Essa limitação também se reflete em como lidamos com a privacidade e a subjetividade na vida cotidiana. Muitas vezes, o que achamos que conhecemos sobre nós mesmos pode estar distorcido ou incompleto. No entanto, para Skinner, isso não significa que o autoconhecimento seja inútil ou irrelevante. Pelo contrário, ele é essencial para o funcionamento em sociedade, já que muitas de nossas interações dependem da nossa capacidade de relatar nossos estados internos de forma compreensível para os outros.
Um exemplo clássico desse desafio é o conceito de "consciência". Skinner argumentava que estar consciente é, essencialmente, estar em posição de relatar ou descrever o próprio comportamento. Porém, como esse relato depende do reforço social e da comunidade verbal, nossa "consciência" é, em grande parte, moldada pelas interações sociais e culturais que vivemos. Em outras palavras, a consciência é um produto social, algo que desenvolvemos através de nossa vida em sociedade.
A Epistemologia e o Pragmatismo na Psicologia Comportamental
Um ponto importante na discussão do autoconhecimento na psicologia comportamental é o aspecto epistemológico da abordagem de Skinner. Ele adotou uma posição pragmática, focando na utilidade prática das teorias psicológicas em prever e controlar o comportamento, ao invés de tentar descrever uma "verdade" objetiva sobre a mente. E isso foi uma mudança considerável para entender o ser humano como ele é, ou através de seus comportamentos observáveis.
Essa postura pragmática é evidente na maneira como Skinner lidou com a questão dos eventos privados. Em vez de tentar desenvolver uma teoria detalhada e precisa sobre a natureza da mente ou da consciência, ele preferiu se concentrar em como esses conceitos podem ser utilizados para explicar e influenciar o comportamento. O valor de uma teoria psicológica residia na sua capacidade de gerar resultados práticos, como intervenções comportamentais eficazes.
Nesse sentido, o autoconhecimento não é visto como um fim em si mesmo, mas como um meio para melhorar nossa interação com o mundo e com os outros. Se conseguimos discriminar nossos estados internos e usá-los para guiar nosso comportamento de maneira mais adaptativa, então o autoconhecimento tem valor. Caso contrário, ele pode ser visto como apenas mais uma construção verbal sem utilidade prática.
Desafios no estudo
Embora a abordagem behaviorista radical ofereça uma visão muito importante do autoconhecimento, ela não está isenta de críticas e desafios. Uma das principais críticas é que ela pode ser vista como excessivamente reducionista, tratando a complexa experiência humana como meramente uma série de comportamentos observáveis e contingências de reforço.
A ênfase no pragmatismo pode levar a uma subvalorização de aspectos importantes da experiência humana que são difíceis de quantificar ou manipular experimentalmente, como a subjetividade profunda ou a criatividade. Para muitos críticos, essas são partes essenciais da nossa humanidade que não podem ser completamente capturadas por uma análise comportamental.
No entanto, é importante reconhecer que o behaviorismo radical não busca necessariamente eliminar essas questões da psicologia, mas sim reinterpretá-las de uma maneira que seja coerente com a sua filosofia científica. Isso significa que, ao invés de tentar medir diretamente a "consciência" ou a "mente", o behaviorismo radical se preocupa mais em entender como esses conceitos se manifestam em termos de comportamentos observáveis e suas relações com o ambiente.
O futuro do estudo do autoconhecimento na psicologia comportamental pode muito bem envolver uma maior integração com outras abordagens psicológicas, como a psicologia cognitiva, que se concentra mais nas representações mentais e nos processos internos. Já existem sinais de que essas disciplinas estão começando a se convergir, com abordagens como a "neurociência comportamental" que tentam unir o estudo do comportamento observável com uma compreensão mais profunda dos processos cerebrais subjacentes.
O desenvolvimento de novas tecnologias, como a neuroimagem, pode oferecer novas maneiras de investigar os processos internos de uma forma que seja mais consistente com a filosofia do behaviorismo radical. Essas tecnologias permitem uma observação mais direta dos estados cerebrais, o que pode ajudar a preencher a lacuna entre o comportamento observável e os eventos privados.
Considerações finais
O autoconhecimento, do ponto de vista da psicologia comportamental, desafia muitas das nossas concepções tradicionais sobre a mente e consciência. Em vez de vê-la como uma jornada puramente introspectiva, ou interna, o behaviorismo radical nos convida a considerá-lo como um comportamento aprendido, moldado pelas interações sociais e reforçado pela comunidade verbal.
Essa perspectiva nos oferece uma maneira de entender não apenas a nós mesmos, mas também como nos relacionamos com os outros, com o mundo em geral. Ao reconhecer as possibilidades do autoconhecimento como um comportamento aprendido, podemos começar a pensar de maneira crítica sobre o papel que ele desempenha em nossas vidas e como podemos cultivá-lo de maneira mais eficaz.
Embora a abordagem behaviorista radical tenha suas limitações, ela oferece uma base sólida para continuar explorando o autoconhecimento de maneira científica e pragmática. Ao integrar essa abordagem com outras perspectivas e novas tecnologias, podemos desenvolver uma compreensão mais completa e prática de quem somos e como funcionamos no mundo.
Seja na busca por um entendimento mais profundo de nós mesmos ou na tentativa de melhorar nossas interações sociais, o autoconhecimento continua sendo uma parte da experiência humana. E, como nos ensina o behaviorismo radical, essa é uma experiência que não ocorre no vácuo, mas é continuamente moldada pelas forças que nos rodeiam.
Referências
"The Operational Analysis of Psychological Terms" de B.F. Skinner: https://userpages.umbc.edu/~catania/ABACNJ/Pages%20from%20BBS%20BFS%204%20terms.pdf
"Sobre o Behaviorismo" de B.F. Skinner: https://aweafs.wordpress.com/wp-content/uploads/2013/08/skinner-burrhus-sobre-o-behaviorismo.pdf
O Comportamento Verbal de B. F. Skinner: uma introdução: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452007000200002
Pragmatism: A New Name for Some Old Ways of Thinking: https://en.wikisource.org/wiki/Pragmatism:_A_New_Name_for_Some_Old_Ways_of_Thinking
"Ciência e Comportamento Humano" de B.F. Skinner: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185932/mod_resource/content/1/SKINNER%2C%20B.%20F.%20Ci%C3%AAncia%20e%20comportamento%20humano.pdf
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